Mulher com um vestido amarelo - quarentena

Diários da quarentena: quando o querer nos impede de ser

Ilustração de mulher com os olhos fechados e com a cabeça para trás

Durante esta quarentena tenho reflectido sobre a forma como as pressões/projecções da sociedade moderna nos afectam. Sobre as expectativas dos outros perante nós mas, essencialmente, sobre as expectativas que criamos para nós mesmos.

Ser bem-sucedido, ser proprietário de um carro, de uma casa, ter uma relação perfeita (a sério que não compreendo o #couplegoals), saber firmemente qual é a carreira que queremos seguir e segui-la desde tenra idade, ser perfeito ou viver de acordo com o estereótipo do que é ser ideal, ser visto e reconhecido, adoptar a alimentação mais em voga, ser um dos bodhisattvas do século XXI (iluminado), saber a origem de todas as coisas e compreender profundamente a ordem que sustenta o universo, viver num destino paradisíaco, ter muito dinheiro e puder pedir a reforma antecipada aos 50.

A quarentena é, claramente, uma oportunidade para reflectir sobre o estado do mundo e sobre o nosso estado, mas é também, uma armadilha para aqueles que mergulham de cabeça no mundo das projecções criada pelas redes sociais e por outros factores que nos são externos. Todos nós somos vítimas destas pressões e projecções – das projecções que fazemos dos outros e de nós próprios.

E é mesmo este ponto que quero tocar. As pressões que colocamos a nós próprios são uma consequência directa do nosso ego e das projecções que fazemos sobre a vida perfeita que idealizamos. Imaginamos a nossa vida no futuro e projectamo-nos a alcançar a felicidade suprema, a fazer a postura mais avançada de yoga, a comprar isto ou aquilo, e vamos perpetuando os estereótipos de que “se agir assim, vou atingir este fim”.

Imaginamo-nos no futuro, projectamo-nos, e acabamos por nos tornar num actor (tipo heterónimo) que sobe ao palco da nossa vida e que toma conta dela. Ele actua e faz um extraordinário espectáculo sobre uma vida perfeita que se passou, apenas e inteiramente, na nossa mente.

Perdoem-me a metáfora, vou tentar ser mais clara.

Metáforas à parte

Todos nós nos debatemos sobre como ser feliz e realizado.

No entanto, quanto mais asas damos às nossas projecções e quanto mais alimentamos o nosso ego, mais nos sentimos incapazes de transpor para a vida real aquilo que idealizámos (somente) na nossa cabeça. E é assim que acabamos por sofrer. Acabamos por nos agredir ao sermos indulgentes e intolerantes connosco próprios.

Não é preciso ir à Índia e não é preciso fazer retiros mensais para nos conseguirmos conectar connosco próprios. Não é necessário fazer rigorosamente nada a não ser viver no momento presente e tomar consciência das falsas projecções que fazemos sobre o que queremos e como queremos ser.

Aos 16 anos vi-me a viver sozinha pela primeira vez. Sem grandes regras, acabei por criar uma rotina diária, mas de forma muito natural, inocente e não organizada. Adoptei uma alimentação que me fazia sentir bem, dava passeios, lia e escrevia, ouvia música e vivia simplesmente o dia-a-dia, com muito silêncio. Essa fase foi profundamente transformadora e acredito que essa transformação adveio do facto de não ter querido alcançar nada em particular com as minhas novas circunstâncias. Nunca quis criar uma rotina para alcançar a felicidade ou para me conectar comigo mesma. Isso aconteceu naturalmente. O unico esforço, inadvertido, que houve foi o de me entregar ao momento presente. Supresa minha é que, ao entregar-me, fui presenteada com o estado de alma mais sereno e inesgotável.

Esta experiência (que não expliquei ao pormenor e que foi muito mais significativa do que aparentou ser no parágrafo anterior) permitiu-me observar o mundo como nunca antes tinha observado e ensinou-me que, quanto mais expectativas faço sobre mim mesma, mais sofro.

É claro que, esta é uma luta que travo todos os dias – entre as projeções que faço sobre mim mesma e entre a consciência de que a realização pessoal não depende do reconhecimento. Pode, afinal, o ser humano renegar o reconhecimento que parece ser a única coisa que, hoje, atribui valor ao ser? Fica a reflexão.

Cada vez mais “queremos” ser a pessoa que idealizámos ser, queremos ser felizes, ser alinhados, ser conectados. E é este “querer” desenfreado que nos distancia desse fim. Hoje em dia queremos tanto que acabamos por depositar todas as nossas esperanças para a felicidade no que nos é externo. Todos nós percorremos caminhos diferentes e todos eles partilham o mesmo valor. Para quê o reconhecimento dos outros se o caminho do bem-estar, da equinimidade, é um caminho solitário? Há quem se sinta momentaneamente em plena concordância consigo mesmo e não há quem o precise de
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Pela minha experiência pessoal, quando vivemos naturalmente e quando deixamos de agir cegamente em função daquilo que queremos e com as expectativas alheias, é que podemos realmente experimentar essa conexão, porque simplesmente nos entregamos.

Cabe-nos a nós recuar e questionar o que vemos e o que projectamos. Dessa forma conseguiremos dar mais intenção/propósito ao que realmente importa. As projecções são apenas ilusões profundas…

Pessoalmente, luto todos os dias contra as projecções do meu ego ao lançar-me nesta aventura extraordinária que é o de experimentar o mundo sem qualquer expectativa.

Mais monólogos aqui.

Assinatura a eterna insatisfeita