“Não é preciso escrever quando se sente”

Mulher com olhos fechados

Addis Ababa, Etiópia, 15:20PM
24/07/2022

O dia 30 de Julho marcará o meu quarto mês na Etiópia.

Procuro as palavras para descrever como têm sido estes últimos meses mas, por uma razão qualquer que desconheço, não é a mão que me encaminha como de costume. Em busca de inspiração e, de forma a compreender o porquê de me faltaram as palavras para escrever, fui ler alguns fragmentos do meu livro sobre o simples acto de escrever. Encontrei este excerto e a frase “Não é preciso escrever quando se sente”.

“Aquele que é escritor é-o, assim, porque sente de maneira especial, porque escreve o que sente e porque transmite o que sente ao escrever bem e belamente. A individualidade e a contemplação são primordiais à escrita. A escrita só é possível porque existe o indivíduo e porque esse indivíduo se abstrai do mundo para contemplar e só depois para escrever o que contempla. Por isso, na obra, devem manifestar-se características do indivíduo que escreve (raiva, mágoa, êxtase, alegria). O leitor deve notar vestígios da pessoa que o escritor é: a essência do escritor, o seu universo. A escrita não é mais que um reflexo de quem escreve. E sendo um reflexo de quem escreve, é um reflexo de quem lê.

A obra é-o primordialmente assim porque transcreve a essência nua e crua daquele que escreve. Não há espaço para a regra quando se quer pureza na obra. Porque a obra só o é assim – somente pura – quando é espírito. A escrita é uma criação transcendente insuperável na medida em que é a projecção do espírito e do universo do indivíduo. A escrita é a obra do espírito e a pureza deve ser a sua única regra.”

Este fragmento foi escrito há mais de dez anos. Pergunto-me como. Como é que escrevi este excerto há tanto tempo e como é que, dez anos depois, aqui estou, sem encontrar palavras para descrever o que sinto.

Separador

Estou à frente do computador. As cortinas estão abertas e consigo ver a cidade de Addis Ababa, ao longe. Consigo ver o aeroporto, que fica mesmo à frente da minha casa. O aeroporto dá-me alento. Quando me mudei para este apartamento e, nos primeiros dias, o som dos aviões a levantar voo incomodavam-me. Hoje é neles que encontro alento e conforto.

“Se precisar de fugir, o aeroporto é já ali”…

“Um dia vou ser eu naquele avião a levantar voo, rumo a casa”…

E rio-me. Rio-me sozinha quando penso nisto porque tem piada! E rio-me ainda mais, ao mesmo tempo que abano a cabeça, porque me lembro automaticamente dos versos da música da Carlota “Rir pra não chorar”. É, esse é o meu lema!

Não sei ao certo se “rir da nossa própria desgraça” é saudável, ou sinal de que estamos a ficar mentalmente senis. Eu escolho a primeira opção.

Este fim-de-semana tenho àgua e electricidade (pelo menos durante 95% do tempo). Só me falta a internet mas falta sempre qualquer coisa na Etiópia…

E é isto. Quando me faltam as palavras começo para aqui a divagar de forma a compreender o porquê de me faltaram as palavras para escrever. Até que volto à frase que encontrei no livro: “Não é preciso escrever quando se sente”. Talvez seja isto. Talvez seja por sentir demasiado nos últimos tempos. Maioritariamente impaciência e indignação. Mas isso partilharei mais tarde, quando for a mão a encaminhar-me pelas palavras, como de costume.

Assinatura a eterna insatisfeita