A literatura portuguesa na Europa
Em 1998, numa exposição no Salão do livro de Paris perguntaram a António Lobo Antunes como é que os portugueses, sendo um povo tão pequeno e não sendo tão culto como o povo francês e inglês, tem produzido uma elite de escritores notável no panorama literário internacional. Em resposta, António Lobo Antunes disse que, para produzir grande literatura, é preciso experimentar a dor, o sofrimento e a crise. O povo português é sofredor, sofredor em grande medida e intensidade e é dessa sofreguidão que nasce a obra incomensurável. Porque só em situações dramáticas – de desespero, de quase não sentido – se recorre à literatura como caminho de redenção. Como vocês são muito prósperos e estão muito acomodados, não sofrem e não podem fazer grande literatura, disse-lhes o enfant terrible da literatura portuguesa.
Será a causa desta sofreguidão, realmente, a resposta para a produção de excelência no panorama literário português? E se sim, de que forma é que esta Europa pluricultural transmuta e influência a produção literária portuguesa?
As respostas surgiram (se é que poderão alguma vez ser respondidas) depois de percorrer os labirínticos corredores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entrei e o entorpecer do labirinto depressa se evaporou para se deixar harmonizar com as estantes de livros que davam vida e luz ao escritório. De trato extremamente gentil fui recebida por José Eduardo Franco, historiador especialista em História da Cultura e diretor do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Diante de mim, um homem da cultura com um conhecimento enciclopédico sobre matérias ligadas à filosofia, cultura e religião e articulista assíduo da imprensa e da produção literária portuguesas, José Eduardo Franco.
Como é que o interculturalismo Europeu influenciou a literatura portuguesa?
O regime democrático instituído em 1975, na sequência da revolução, abriu o espaço de liberdade que influenciou a criação literária. Do ponto de vista da produção do romance e da poesia os constrangimentos e as preocupações que eram típicas no tempo da ditadura, passaram a ser outras. A Europa passou a ser o nosso objectivo fundamental, a nossa meta enquanto que no tempo da ditadura estávamos muito virados para o atlântico, para as colónias, para África, para o Império. Após a revolução virámos a face para a Europa. O objectivo passou a ser o da integração e o de aproximação relativamente aos valores de progresso e de mudança de mentalidades.
Com esta mudança de orientação do país, que levou à integração de Portugal na União Europeia em 1986 – quer ao nível da historiografia quer ao nível do romance, quer ao nível da nossa relação intelectual – Portugal começou a ser pensado muito em função da Europa. Naturalmente, assim que as fronteiras se abriram, as correntes literárias europeias que antes só nos entravam clandestinamente, começaram a circular livremente e o nosso panorama de produção intelectual, quer de ficção, quer de ciência, quer de história, passou a ser marcado fundamentalmente por aquilo que eu chamo ser a Meta Europa.
Tínhamos de estar ao nível da Europa, tínhamos de escrever como os europeus escreviam, tínhamos que pensar com os valores que estavam em voga. Naturalmente, isso mudou a forma de vermos o mundo e de nos vermos a nós próprios.
Surgiram intelectuais europeístas como o Eduardo Lourenço, como o José Gil, como o Francisco Lucas Pires, que começaram a pensar na Europa e na necessidade de nos integrarmos e de pensarmos na nossa identidade e na nossa tradição como tradição europeia. De algum modo dissemos: “Nós temos condições e temos que fazer um esforço de nos aproximarmos e de nos integrarmos no continente do qual fazemos parte geograficamente. Precisamos de conquistar a cidadania do ponto de vista cultural, do ponto de vista científico”. De tal modo que o nosso discurso passou a ser o “temos de nos aproximar”, “temos de andar ao ritmo da Europa”, “temos de sair da cauda da europa” – ideia impressa a partir do tempo do Marquês de Pombal. Desde o século XIX, os nossos intelectuais já diziam:
“Temos de nos aproximar da Europa”, “temos de sair da carruagem de trás que é o comboio do progresso europeu’. Este tipo de discurso tornou-se ainda mais forte com a emergência do regime democrático. E isso veio a ter impacto na literatura.
Muitos escritores que se tornaram célebres no contexto da democracia como, por exemplo, Rui Zink, Miguel Real, Gonçalo M. Tavares, Lobo Antunes e Saramago, pensam Portugal em função da Europa (em função da proximidade e do distanciamento) o que evidencia o conflito de mentalidades e reflecte a nossa grande dificuldade – devido à nossa idiossincrasia de ora nos queremos aproximar, de ora nos mantermos em nós próprios. Afinal, começou-se a pensar e discutir, “valerá a pena nos rendermos totalmente à Europa e abandonarmos os nossos valores”?
Essa tensão, entre o ideal utópico, mítico, de uma Europa que se idealizava e aquilo que era a nossa tradição e maneira de estar, foi sempre sendo tratada pela produção literária, ficção, romances e pela produção jornalística, de crónicas e outros géneros.
Tendo em conta o actual contexto económico e financeiro europeu, acha que a literatura deveria voltar a debater, de forma mais acérrima, a política?
Como diz Fernando Cristóvão, a literatura é a antropologia das antropologias. A literatura envolve sempre o humano. Ultimamente tem aparecido muita literatura de denúncia. Um dos seus objectivos é criticar, alertar, fazer reflectir e pensar, muitas vezes, utilizando casos caricatos e ficcionados. Um exemplo de um escritor que denuncia é Miguel Real, que escreve sobre Portugal, os seus antagonismos, os seus desvios, os seus maneirismos. Ele denuncia na obra “A Vocação Histórica de Portugal” esta sereia que foi a Europa que nos embalou. Critica o novo-riquismo, o esquecimento daquilo que é a nossa tradição, o esquecimento dos valores portugueses e a rendição total ao consumismo que nos irá aniquilar.
Entendo que, no contexto da democracia e das nossas crises e fragilidades como nação – e o que é certo é que Portugal é um país que está sempre em crise – o nosso estado natural é a crise.
De vez em quando temos uns intervalos prósperos, mas olhando para a nossa história, notamos que é muito marcada por fragilidades. Portugal é um país sempre em crise, com alguns momentos de fragilidade. Esta consciência de crise que nos marca é de certa maneira, redimida pela nossa literatura.
E como é que redimimos a nossa crise identitária através da literatura?
Pelo que dizia Alexandre Herculano, no século XIX, “o milagre português era o milagre literário”. Como é que um país como Portugal, que é tão baixamente alfabetizado, produz escritores tão grandiosos. Portugal é um país pequeno, marcado pela crise cultural, mas geramos escritores notáveis no panorama literário internacional…
Tendo em conta a nossa pequenez, e sendo um país sempre em risco de não ser viável, a literatura é uma forma de mostrar que somos viáveis, que a nossa língua tem poder de criação literária. Ao produzirmos literatura estamos a produzir identidade. É um caminho de salvação, redenção e de resistência.
A literatura é aquilo em que fomos e aquilo em que continuamos a ser muito prósperos. Essa prosperidade permite-nos continuar a subsistir contra todas as crises – sejam elas quais forem.
Ao longo da conversa a pergunta que iria fazer a seguir inverteu-se. Queria perguntar se achava que a integração na UE beneficiou a literatura portuguesa. Mas, vistas as coisas, parece-me que foi mais a Europa que enriqueceu com a produção literária portuguesa. Diga-me o pensa você.
A UE proporcionou-nos um desenvolvimento na esfera das infraestruturas, da ciência e da cultura. Numa perspetiva de mercado, o problema da nossa produção cultural é que não há mercado suficiente para o investimento cultural. Mas há uma área onde se tem uma projecção internacional – a literatura. No pequeno universo literário português, existem escritores que conseguem viver da literatura. Esses são os que têm talento, que se esforçam e que sabem procurar oportunidades e vão abrindo caminho e afirmar-se pela via das letras. Aqueles que tiveram visão, talento e sorte, conseguiram singrar internacionalmente. A UE abriu-nos possibilidades inauditas que de outro modo não teríamos.
É engraçado este contraposto de Portugal em querer integrar-se na UE, mas também em querer recolher-se em si mesmo. Ao criar obras de excelência, é impossível Portugal isolar-se. Porque as obras que cria vão, inevitavelmente, ganhar visibilidade na Europa.
As obras para serem grandes têm de ter reconhecimento. Pode-se escrever uma obra imensa e extraordinária, mas que, se não lhe for reconhecido o talento e a grandeza da criação – seja ela qual for – é desprovido de valor.
Nesse aspecto, a Europa sempre funcionou para Portugal como Palco, Espelho e Meta. Palco porque, desde a nossa fundação, foi na Europa que procurámos obter o reconhecimento. Quando fomos fundados por D. Afonso Henriques, precisámos de ir a Roma buscar uma mula do papa, para sermos reconhecidos como uma nação livre e internacionalmente reconhecida. No século XVI, com os descobrimentos, criámos a primeira globalização, abrimos o mundo ao próprio mundo. Os reis mandaram distribuir pela Europa moedas de ouro, animais exóticos e outros artífices, para mostrar ás cortes europeias a grandeza de Portugal. Era na Europa e sempre foi, que procurámos esse reconhecimento – é aqui que surge a Europa como Palco.
Mas a Europa tem sido espelho: diapasão crítico. Espelho onde nós nos vemos e onde avaliamos o nosso grau de vanguarda, de progresso e de retrocesso. Foi especialmente a partir do tempo de Marquês de Pombal que esse espalho passou a ser um espelho altamente crítico, onde nós tomámos consciência do nosso atraso em relação à Europa e concluíamos que afinal tínhamos perdido essa vanguarda europeísta e globalista e retrocedemos para a cauda. Estávamos nas traseiras da Europa e precisávamos de nos aproximar – a Europa como espelho.
Até à actualidade, a Europa passou a ser, para nós, a grande meta. Isto é, o modelo de progresso estava na Europa e nós tínhamos que trabalhar para aproximarmo-nos, atingirmos essa meta fulcral de progresso e até ultrapassá-la – a Europa como meta.
Isto é uma espécie de complexo, a que eu chamo o complexo de Europa mítico a Portugal, do qual nunca nos libertamos. Todos os dias os jornais nos dão o reflexo deste complexo, que é complexo de estar na cauda da Europa. Nós, obcessivamente, medimos aquilo que fazemos em comparação com a Europa. Tornamos mítico e abstrato o conceito de Europa. Ao longo da história a Europa funcionou para nós com estas três valências: Palco, Espelho e Meta.
Quais são os inimigos invisíveis da literatura?
O nosso concorrente desleal é a área da tecnologia e das ciências exactas, engenharias etc. Num contexto em que todas as políticas valorizam o que é o tecnológico – tecnicização do cosmos e do humano.
Este é um progresso que não tem em conta o desenvolvimento do homem de forma integral, mas tem uma visão parcial e redutora desse desenvolvimento humano. Para uma sociedade estar desenvolvida é necessário desenvolver a ciência – tudo o que tenha a ver com a dimensão palpável da vida material – mas também desenvolver a construção do humano, do espírito. Muitas das sociedades que valorizam extremamente a tecnologia e a economia – na qual tudo, para ter valor deve ser viável e dar lucro – esquecem a outra parte, que é a construção e o enriquecimento do espírito humano.
Por essa razão, temos assistido à criação de sociedades vazias, desprovidas de sentido, sem substância. Estas são sociedades muito marcadas pelo imediato e daí a importância da cultura. Para uma sociedade se equilibrar e viver de forma harmoniosa, deve valorizar aquilo que lhe dá substância, como a literatura.
Uma sociedade que deixa de ter um projecto cultural e apostar nas artes e na cultura, envolvendo o espírito humano no seu todo, acaba por se autodestruir. E com o tempo vai ficando vazia. É por isso que quando se descura este lado cultural da sociedade, perde-se o sentido. A literatura tem esta função – a de chamar à atenção para as outras dimensões que são absolutamente vitáveis e valorosas para a vida em sociedade.
Mas a tecnologia pode também ajudar os novos autores.
As primeiras edições de Miguel Torga eram de autor, era ele que as produzia. Com as novas plataformas de divulgação, a edição feita pelos autores é muito mais concretizável. São novos tempos e existem novas possibilidades. Se forem usadas ao serviço da cultura, melhor ainda.
E a grande pergunta. Acha que a entrada de Portugal na UE beneficiou a literatura portuguesa?
A abertura de um país que se integra, aceitando dialogar e conhecer novas maneiras de pensar e de estar, enriquece a sua visão do mundo e consequentemente a sua produção literária. Certamente enriqueceu. O ideário do orgulhosamente sós não funciona.
Agora uma alegoria… imagine um lago sem peixes. Um lago desprovido de vida, oco e vazio, onde não existe espaço para a criação porque não existem possibilidades. Agora imagine um lado cheio de animais, cheio de oportunidades e opções. É esse lago que nos traz algo de novo, que nos faz acreditar que é possível sonhar, concretizar e criar.
Entrevista feita em maio de 2012. Na altura com 21 anos, miudamente leiga face ao entrevistado que à minha frente se coloca, mas curiosa o suficiente para questionar. “A Europa Segundo Portugal” de José Eduardo Franco e Pedro Calafate; “A vocação Histórica de Portugal” de Miguel Real; “Açores, Açorianos, Açorianidade” de Onésimo Teotónio Almeida. Obséquio do académico e entrevistado José Eduardo Franco. Grata pela entrevista e pela partilha.
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