Visitei, algures num tempo que não sei precisar, a Hemeroteca Municipal de Lisboa e deliciei-me com um o artigo de opinião de Sophia de Mello Breyner Andresen “A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda” que se escondida por entre as inúmeras pilhas de jornais que compunham as estantes deste espaço enciclopédico que é a hemeroteca lisboeta.
“A arte deve ser livre porque o ato de criação é em si um ato de liberdade”, escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen no semanário Expresso, a 12 de julho de 1979, num artigo a que chamou “A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda”.
Escrito no desenlace do 25 de Abril e não ficando indiferente às promessas da revolução, a escritora portuguesa apelava à liberdade da arte e, porventura, à liberdade do povo – porque quando “o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado”. Uma reivindicação que revela uma preocupação evidente com uma política castradora, não fosse a poetisa afirmar ainda que o que se quer não é uma “política da terra queimada”, mas sim uma política que “não seja anti-cultura”. Refletindo os tempos como só um artista sabe fazer, Sophia de Mello Breyner deixa-nos como legado, a lembrança de que a reflexão e a reivindicação não se devem limitar a um tempo castrado, mas também a tempos castos e áureos marcados por promessas, expectativas e possibilidades.
O universo de Sophia: infância
O impulso criativo sempre se mostrou como uma inevitabilidade na vida da poetisa, que teve o primeiro encontro com a poesia com apenas três anos. Foi na tumultuosa viagem marítima e nas desventuras dos tripulantes da “Nau Catrineta” que Sophia encontrou a poesia. Ao poema aprendeu-o com a criada da casa, Laura, “uma mulher jovem, loira e muito bonita”. Mas houve outros encontros fundamentais com as letras, diz a escritora quando entrevistada por Maria Armanda Passos.
Esses outros encontros, com cheiro ao alecrim que a governanta da família Breyner queimava nas noites de temporal, mergulharam na alma da poetisa despertando-lhe a consciência, pela primeira vez, para a dureza da vida dos outros. Foi nesse “ambiente misto de religião e magia” – nos quais a governanta acendia uma vela e rezava para que os pescadores chegassem seguros a terra – que nasceu na poetisa um grau de preocupação social e humana.
Filha de João Henrique Andresen e de Maria Amélia de Mello Breyner, Sophia nasceu no seio de uma família aristocrática com fortes tradições liberais. Com ascendência dinamarquesa pelo lado paterno, nasceu no Porto a 6 de novembro de 1919 e ali permaneceu, na Quinta do Campo Alegre (hoje o Jardim Botânico do Porto), onde viveu com os avós e onde acabou por crescer.
À Quinta de família – que ficava para os lados do mar – chegavam ventos do Sul e tempestades uivantes que abanavam as portadas de madeira depositando no universo imagético da poetisa, a imagem de “um mar completamente louco” cujas ondas ora devoravam o pescador, ora criavam uma “espécie de espaço de salvação e de esplendor no meio do temporal, no meio do caos”.
O mar faz parte do universo poético da poetisa, não tivesse vivido perto da praia da Granja – na época, uma das praias mais aristocráticas do litoral português – onde passava o Verão e onde alimentava o imaginário com histórias que mais tarde viriam a inspirar obras como a “Menina do Mar” e a “Casa branca em frente ao mar”.
Esta casa onírica onde Sophia cresceu, com o mar enorme à frente e com um “jardim de areia e flores marinhas” constitui-se como um dos maiores sujeitos do universo poético da artista – não fosse grande parte da sua obra revolver a essa infância feliz. cultura
A quinta portuense do Campo Alegre – descrito mais tarde pela poetisa como “um território fabuloso” no qual se impunha um palacete vermelho de estilo neoclássico – foi adquirida pelo avô da poetisa em 1895. “Ali a magia como fogo ardia de Março a Fevereiro / A prata brilhava o vidro luzia / Tudo tilintava tudo estremecia /De noite e de dia”.
Os jardins da quinta eram escrupulosamente decorados pelos avós de Sophia com flores “de todos os lados do mundo”. “Quando à noite desfolho e trinco as rosas” refere a poetisa, numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos, ao recordar os tempos em que “trazia imensas rosas para casa” para depois as desfolhar, mastigar e comer numa tentativa de captar aquilo a que chamou “a alegria do universo” ou “qualquer coisa que floresce”. Com a morte da avó morreu também um pouco da alma dos jardins onde, meio semi-abanonandos, a jovem Sophia colhia rosas na Primavera e camélias no Inverno.
A casa cujo jardim foi cortado pela Ponte da Arrábida e cujos plátanos foram arrancados, disse Sophia, numa entrevista ao “Jornal de Letras” a 5 de fevereiro de 1985, já não era a mesma. Talvez tenham sido esses jardins, imortalizados no poema “A Casa do Mar”, que tenham cravado a temática ‘natureza’ no universo poético da autora: “A casa que eu amei foi destroçada/ A morte caminha no sossego do jardim/ A vida sussurrada na folhagem/ Subitamente quebrou-se não é minha”.
O mar
Depois da casa, veio o mar. As reminiscências desta infância povoam a obra poética de Sophia, particularmente nos contos para crianças. Contos esses que começaram quando Sophia tentava acalmar os seus filhos, com sarampo, contando-lhes histórias que compunham a sua infância.
Na “Menina do Mar” inspirou-se nos lugares que compuseram a sua meninez e na história que, um dia, a sua mãe lhe contou sobre uma menina muito pequenina que vivia nas rochas. Essa menina do mar, diz a autora numa entrevista a Lúcia Garcia Marques, “tornou-se para mim o símbolo da felicidade máxima, porque vivia no mar, com as algas, com os peixes.” Construindo argutamente novos enredos ao redor destas breves lembranças de menina, Sophia começou a povoar o seu mundo (e diga-se de passagem, o mundo dos outros) com a sua fantasia. cultura
Foi no dia 2 de julho de 2004 que morreu na sua residência, em Lisboa, aos 84 anos. Sophia de Mello Breyner Andresen deixa editada uma vasta obra de poesia, antologia, prosa, ensaios e teatro. Casada com o jornalista, político e advogado Francisco Sousa Tavares e mãe de cinco filhos, entre eles o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner permanece como uma poetisa intemporal, humana, uma poetisa do e para o povo.
A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda
A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda
1 – A ARTE deve ser livre porque o acto de criação é em si um acto de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade na liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, uni-dimensional e abstracta. Se o ataque à liberdade cultural me preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma e significa sempre opressão para um povo inteiro.
2 – Não penso que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse aceso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação. Primeiro os «aedos» cantaram no palácio dos reis gregos «o canto venerável e antigo». Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero, foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. Quando o aedo, ou poeta medieval cantavam na praça, o seu poema era ouvido por todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por todo o país e de país em país: por isso o mirândes canta Mirandolim –Marlbourg. Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram divididas e cada homem foi dividido dentro de si próprio. cultura
Excerto do Artigo de Opinião de Sophia de Melo Breyner Andresen publicado no Jornal Expresso, 1979 e encontrado, inesperadamente, por mim na hemeroteca de Lisboa. Podem visitar a adaptação deste artigo que publiquei no Expresso, enquanto estagiária do jornal em 2013, aqui.
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