É a pior crise humanitária do mundo. 80% da população necessita de ajuda humanitária, mais de 20 milhões de pessoas em todo o país sofrem de insegurança alimentar e cerca de 10 milhões estão à beira da fome.
O conflito do Iémen, que opõe os rebeldes xiitas houtis, com predominância no Irão, e as forças sunitas leais ao governo, apoiadas pela colisão internacional liderada pela Arábia Saudita, deixou mais de dois terços da população sem proteção. Os serviços públicos foram destruídos e apenas 51% das unidades de saúde estão funcionais. Fica a conhecer os contornos do conflito da República do Iémen, um conflito que tem merecido pouca atenção mas que não deixa de ser, ainda assim e praticamente desde o seu começo, palco de uma das maiores crises humanitárias do mundo.
Os primórdios do conflito
O conflito remonta ao fracasso da transição política que se sucedeu após a Primavera Árabe e que forçou o antigo presidente autoritário do Iémen, Ali Abdullah Saleh, a entregar o poder ao seu vice-presidente, Abdrabbuh Mansour Hadi, em 2011. No entanto, as raízes do conflito remontam a um Iémen frágil, eclipsado pela linha invisível entre um noroeste xiita, de maioria houthi, e um sul de maioria sunita.
Os Houthis são um grupo rebelde de minoria zaidita (uma dissidência do xiismo) com predominância no norte do Iémen. O slogan do grupo é: “Deus é Grande, Morte à América, Morte a Israel, Maldição aos Judeus, Vitória ao Islão”.
A Primavera Árabe trouxe à superfície o estado frágil de um Iémen liderado, desde 1990, por um único presidente: Ali Abdullah Saleh. O ressurgimento de rebeldes houthis no Norte do país deu-se no início dos anos 2000. Por essa altura, começava-se a fazer sentir a presença da Arábia Saudita no país, que apoiava a luta contra os radicais houthis.
A Primavera Árabe veio apenas trazer à superfície os problemas que estavam a fermentar há já vários anos no Iémen. A vaga de protestos obrigou Saleh a renunciar ao poder e a entregá-lo ao vice-presidente Abd Rabbu Mansour Hadi. Esperava-se que a transição política, apoiada pelas monarquias árabes do Golfo, trouxesse estabilidade e crescimento ao Iémen – o país mais pobre da Península Arábica e que antes da guerra já importava 90% dos produtos alimentares – mas foi precisamente o contrário.
A escalada da crise
Comprometido a voltar ao poder e numa reviravolta inesperada, o antigo presidente autoritário Saleh, aliou-se militarmente aos seus inimigos: os houthis. Em setembro de 2014, os houthis e Saleh avançaram sobre a capital do Iémen, Sana, para levar a cabo um golpe de estado. Com a vitória, seguiu-se a autoproclamação de Ali Abdullah Saleh como o novo presidente do Iémen.
O conflito ganhou novos contornos depois do assassinato de Saleh, pelos rebeldes houthis, acusado de traição por querer dialogar com a Arábia Saudita.
Infiéis a qualquer tipo de poder presidencial no país, os houthis conseguiram tomar a capital do Iémen com a cumplicidade de unidades militares fiéis a um antigo presidente que acabou morto às suas próprias mãos.
O conflito escalou dramaticamente em março de 2015 quando a intervenção direta de uma coligação regional liderada pela Arábia Saudita, pelos Emirados Árabes Unidos e pelos Estados Unidos iniciou uma série de ataques aéreos contra os houthis, com o objetivo declarado de restaurar o governo de Hadi e de combater a presença de xiitas no país. De momento, a guerra no Iémen opõe as duas maiores potências regionais do Médio Oriente: a Arábia Saudita, de maioria sunita, e o Irão, de maioria xiita.
Combatentes houthis recém-recrutados participam num desfile antes de irem combater contra as forças do governo em Sanaa, Iémen, a 1 de fevereiro de 2017. A bandeira diz: “Deus é grande, morte a América, morte a Israel, maldição sobre os judeus e vitória do Islão”. Foto: Reuters/Khaled Abdullah
Números negros
Desde a ocupação da capital pelos rebeldes houthis, em 2015, que o Iémen está envolvido numa guerra civil que devastou a vida a milhões de pessoas. O país enfrenta uma crise humanitária sem precedentes que envolve 80% da população.
“Os civis não estão a morrer à fome no Iémen, estão a ser mortos à fome”. A declaração foi feita por Jan Egeland, secretário-geral do Conselho de Refugiados Norueguês, e traduz a situação catastrófica do Iémen.
Cerca de 24 milhões de pessoas no Iémen precisa de apoio humanitário. Mais de 20 milhões sofrem de insegurança alimentar e uns impressionantes 7,4 milhões de iemenitas não sabem de onde vem a sua próxima refeição.
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) estima que 4,3 milhões de pessoas tenham fugido das suas casas desde o início do conflito, das quais 3 milhões de pessoas permanecem deslocadas.
Crianças são as mais vulneráveis
As crianças iemenitas crescem cada vez mais vulneráveis e sofrem com a escassez de comida e com a falta de educação que lhes rouba o futuro. Cerca de 360 mil crianças com menos de 5 anos sofrem de malnutrição aguda e 30 mil delas morrem por falta de acesso a cuidados de saúde.
No total, 12 milhões de crianças necessitam de assistência humanitária urgente e 4,7 milhões precisam de assistência na esfera da educação.
Os serviços públicos foram destruídos e apenas 51% dos centros de saúde permanecem funcionais. O acesso a água potável tornou-se um grande desafio e a falta de saneamento adequado aumentou o risco de doenças transmissíveis.
Se o conflito continuar, o Iémen pode enfrentar “a maior fome do mundo em 100 anos”, avisou a coordenadora humanitária da ONU no Iémen, Lise Grande. Segundo a coordenadora, 13 milhões de civis podem morrer à fome se as forças lideradas pela coligação da Arábia Saudita não puserem fim aos bombardeamentos que assolam o país.
Os números são negros. Ofuscado pela guerra na Síria, onde, de acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, já morreram mais de 500 mil pessoas, o conflito esquecido do Iémen tem merecido pouca atenção.
“Estou solidário com os milhões de iemenitas que sofrem. As Nações Unidas e a comunidade internacional, em geral, estão com vocês a cada passo do vosso caminho. Juntos, inshallah (“se Deus quiser”), podemos acabar com o sofrimento no Iémen”, disse o secretário-geral, António Guterres, em declarações na conferência de doadores para a crise no Iémen, realizada em Genebra, a 26 de fevereiro de 2019.
Malnutrição aguda e o aumento da insegurança alimentar
O presente conflito é a principal causa da insegurança alimentar no Iémen. A guerra destruiu meios de subsistência e reduziu a capacidade das famílias em comprar alimentos. Após o início da guerra, o preço médio dos alimentos subiu cerca de 150% e, só no ano passado, o custo de um cabaz de alimentos aumentou 60%. Em 2018, os preços dos combustíveis subiu 200% afetando os setores da agricultura, o abastecimento de água, os transportes, a eletricidade, a saúde e o saneamento.
A segurança alimentar deteriorou-se de forma alarmante desde a ocupação dos houthis da capital do Iémen, em 2015. Cerca de 20 milhões de iemenitas sofrem de insegurança alimentar. O OCHA alerta ainda que cerca de metade da população do Iémen (um total de 14 milhões de pessoas) enfrenta atualmente “condições de pré-fome”.
Estima-se que 7,4 milhões de pessoas necessitam de serviços para tratar e prevenir a malnutrição. Desses, 2 milhões são crianças com menos de 5 anos e 1 milhão são mulheres grávidas ou em fase de amamentação. Cinco divisões administrativas do Iémen têm taxas de malnutrição aguda que excedem o limite de emergência de 15% definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os parceiros humanitários das Nações Unidas estimam ainda que a malnutrição aguda entre as crianças com menos de 5 anos e as mulheres grávidas aumente ligeiramente nos próximos anos.
A situação é tão dramática que o número de pessoas que dependem de apoio alimentar para sobreviver é mais elevado do que se estimava: em vez de quatro milhões, são sete milhões de pessoas a depender da ajuda externa para sobreviver.
Falta de acesso à água, saneamento e higiene adequada
Mais da metade da população do Iémen precisa de assistência para aceder a água potável. O aumento dos preços e a redução do poder de compra criaram barreiras económicas no acesso a este recurso fundamental. A falta de acesso ao saneamento e aos cuidados de higiene adequados aumentam também o risco da propagação de cólera e de outras doenças.
A agravar a prolongada crise caracterizada pela pobreza generalizada, o Iémen tem sido palco de graves violações de direitos humanos e de ataques bárbaros lançados quer pela coligação regional da Arábia Saudita, quer pelos rebeldes houthis a civis.
Cuidados de saúde em suspenso
Aproximadamente 19,7 milhões de pessoas precisam de cuidados de saúde no Iémen, dos quais 14 milhões têm uma necessidade aguda de tratamento. A falta de acesso aos serviços de saúde afetam os grupos mais vulneráveis tais como crianças, mulheres, idosos, deslocados internos e pessoas marginalizadas. A guerra civil devastou o sistema de saúde, com apenas 51% das unidades de saúde a funcionar ou a funcionar parcialmente. Há menos pessoal especializado a trabalhar em hospitais sendo que 53% dos estabelecimentos de saúde carecem de profissionais de medicina geral e 45% dos hospitais funcionais não têm especialistas.
De momento, existem dez trabalhadores de saúde por cada 10 mil pessoas no Iémen, menos de metade do valor mínimo definido pela OMS de 1 médico por cada mil habitantes.
A maioria dos equipamentos médicos que se encontram nos hospitais não funciona ou está obsoleta e muitos profissionais de saúde não recebem salários há já dois anos. A agravar a situação catastrófica do Iémen está o surto de cólera que teve início em 2017 e que, só no ano passado, infetou um milhão de pessoas, sendo o pior surto desde que há registo.
“As doenças que têm cura transformam-se em sentenças de morte quando os cuidados de saúde estão em suspenso e quando é impossível viajar para fora do país”, afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em abril deste ano, ao manifestar a sua preocupação com o surto de cólera no país.
Retornar ao vazio
Aproximadamente 6,7 milhões de pessoas precisam de abrigo e de utensílios domésticos essenciais, nomeadamente os deslocados internos e os retornados iemenitas. Estima-se que 4,3 milhões de pessoas tenham fugido das suas casas em busca de proteção e segurança. Cerca de 3,3 milhões de pessoas permanecem deslocadas e cerca de um milhão regressou à sua terra – um regresso amargo porque tudo o que encontram são as suas casas destruídas.
Crianças sem acesso à educação
Cerca de dois milhões de crianças não frequentam a escola: 36% são meninas e 24% são meninos. O acesso à escola é constrangido devido aos danos provocados pelo conflito mas também devido à sua ocupação por parte de grupos armados ou deslocados internos. O número de crianças que precisam de assistência na esfera da educação aumenta de ano para ano com 4,7 milhões de crianças a necessitarem de cuidados de educação em 2019 quando comparado com os 2,3 milhões de crianças em 2017.
No seio de uma crise económica profunda
O conflito prolongado destruiu os meios de subsistência e reduziu a capacidade das famílias em comprar alimentos e outros bens essenciais básicos. A economia do Iémen contraiu cerca de 50% desde a escalada do conflito e as oportunidades de emprego e de salário diminuíram significativamente. A volatilidade da taxa de câmbio, incluindo a depreciação sem precedentes do rial do Iémen (YER) entre agosto e outubro de 2018, penalizou ainda mais o poder de compra das famílias. O défice do orçamento público prejudicou o funcionamento dos serviços sociais básicos e o pagamento dos salários no setor público. Como resultado, o acesso aos serviços essenciais de água, saneamento, saúde, educação e agricultura tornou-se ainda mais restrito.
Sem ação urgente, a situação vai piorar
As Nações Unidas, juntamente com os seus parceiros, continuam a ampliar a resposta humanitária apesar das graves restrições de acesso em muitas das zonas afetadas do Iémen.
Sem a tomada de ações urgentes – tal como o financiamento integral do Plano de Resposta Humanitária e a tomada de medidas por parte dos Estados envolvidos para acabar com a guerra e para facilitar a entrada de alimentos no país – a crise vai piorar, alerta o OCHA.
É absolutamente necessário que as partes em conflito respeitem o Direito Internacional Humanitário, que permitam a importação de alimentos e de serviços médicos para o Iémen e que garantam a livre circulação de agentes humanitários para alcançar aqueles que mais precisam de ajuda.
Artigo sobre o Iémen escrito enquanto estagiária do Centro Regional de Informação das Nações Unidas e publicado exclusivamente aqui.
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