No dia 14 de abril de 2023, despachei as três malas onde empacotei o meu último ano de vida, e apanhei o avião rumo a casa. Comigo trazia um espírito idealista outrora cheio de sonhos e promessas, destroçado e preenchido com desapontamento e apatia. Nos meses que se seguiram experienciei, pela primeira vez, aquilo que vim a descobrir chamar-se a “síndrome de reentrada” ou o “choque cultural reverso” – que consiste na dificuldade que os profissionais em contexto humanitário (e não só) – enfrentam ao regressar a casa.
1. Lua de mel: Na primeira fase após o regresso, existe uma sensação de missão cumprida, um sentimento de felicidade e êxtase por puder regressar a casa, rever os amigos e a família, e voltar a desfrutar do conforto do qual sentimos falta durante tanto tempo. Nesta primeira fase, que para mim durou algumas semanas, estava tão feliz por regressar que preenchi os dias a ver amigos, a jantar e a almoçar fora, a ir ao cabeleireiro mudar de visual, a ir às compras, e a comer tudo e mais alguma coisa sem me preocupar com intoxicações alimentares.
2. Choque cultural/Crise: Depois da fase da lua de mel, surge a parte mais difícil do processo de reintegração, no qual aquele que regressa tem dificuldade em relacionar-se com o novo contexto, amigos, ou familiares, devido a um sentimento de incompreensão por parte da sua comunidade, família ou amigos relativamente à experiência marcante que aquele que regressa passou. Esta crise pode ainda ser marcada por um sentimento de incompatibilização com o novo contexto social e laboral que aquele que regressa encontra. Para alguns, esta fase de choque/crise pode ter uma duração de semanas; para outros, pode levar meses. O choque cultural consiste numa multiplicidade de sentimentos como a inquietação, mágoa, apatia, depressão, frustração, tédio, isolamento, mudanças nos objetivos e prioridades e sentimentos negativos em relação ao nosso país de origem.
Em mim, este choque cultural inverso, traduziu-se em sentimentos profundos de raiva, melancolia, apatia e frustração contra tudo e todos e ainda sentimentos negativos em relação a Bruxelas, a cidade na qual vivi nos últimos anos e à qual chamo de casa. O sentimento de incompatibilidade relativamente ao estilo de vida corporativo europeu, o desapontamento e a necessidade de redefinir expectativas profissionais e ainda a mudança abrupta e inesperada de prioridades, foi o que mais me marcou nesta fase que durou cerca de 4 meses.
Durante esse período, tudo me irritava. A má gestão na recolha de lixo e os grafitis espalhados pela cidade, a mentalidade tacanha e corporativa de Bruxelas, a ambição profissional desmedida do comum humano, o tédio que sinto ao viver uma vida pacata e previsível numa cidade europeia, a falta de interesse ou incompreensão das pessoas face à experiência que vivi na Etiópia, o trajeto casa-trabalho-casa com a lancheira do proletariado rumo ao novo trabalho temporário que detesto, a rotina de trabalho das 9h às 18h, a previsibilidade do dia, viver sem sol, com frio e chuva constante e ter de conduzir 2 horas rumo à cidade costeira de Ostend (que é feia que dói) porque tenho saudades do atlântico e do cheiro a maresia – apenas para mais tarde descobrir que a costa belga é feíssima e está carregadinha de microplásticos (com concentrações de até 330 partículas por kg de sedimento). Ufff, se vocês já estão cansados de mim, imaginem o quanto eu estou fartinha de mim mesma.
3. Recuperação e Re-adaptação: Nesta última fase é expectável que a pessoa se readapte ao país de origem e entre nas suas rotinas habituais (lol)… Se me perguntam se esta fase já passou, eu respondo com incerteza. Eu própria não faço ideia.
O ano na Etiópica provocou uma mudança profunda nos meus objetivos e prioridades. A ambição profissional e a vontade idealista de “subir a escada corporativa e destruir o patriarcado” dissipou-se. Talvez por ter compreendido que alcançar o acesso universal e equitativo a recursos básicos, erradicar a pobreza, promover a paz e eliminar o abuso, a exploração, a guerra e a violência no mundo nunca será possível sem uma visão e vontade política unívoca.
Não é fácil aceitar este profundo e presente sentimento de incompatibilidade com o mundo onde vivo, aceitar o desencanto com que olho para o mundo e a mudança abrupta e inesperada das minhas próprias prioridades. Como é que posso aceitar que, de um dia para o outro, aquilo que antes me fazia todo o sentido, hoje já não me faz sentido nenhum? Foi uma mudança de expectativas e prioridades demasiado rápida e difícil de digerir. Continuo a querer tudo, mas o tudo que quero hoje é novo, estranho e diferente.
Regressei a casa com um espírito mais frio, realista e cínico. Mais do que nunca, e independentemente do que faça, acredito que o que importa é ser feliz. Não me interessa corresponder às expectativas de mais ninguém a não ser às de mim mesma. As convenções sociais e as expectativas que façam de mim ou as que eu faço de mim mesma, não me importam. A minha prioridade é a de tentar preencher este espírito inquieto (outrora idealista e hoje meio desapontado) com alguma luz, significado, amor, aventura, sol, vida e aconchego.
Ainda assim, apesar do desapontamento, o idealista que sempre houve em mim subsiste, escondido algures nas profundezas do meu ser. Talvez se me arranhar o encontre, hesitante e a espreitar de mansinho, a pedir para o resgatar. “O melhor ainda está para vir”, susurra-me muito baixinho, o idealista que ainda existe no recôndito de mim.
“They say that if you scratch a cynic, you will find a disappointed idealist”
George Carlin
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