Este livro chamou-me à atenção depois de ler o comentário que o London Evening Standard escreveu na capa do livro, que pegava agora com mais entusiamo e uma ligeira euforia. Comparavam-no à obra de Karl Ove Knausgard e eu – que devorei ferozmente os seis volumes autobiográficos e monumentais A Minha Luta – não podia passar impune a este livro colocado na prateleira Bestseller Internacional da Fnac.
Um romance de estreia autobiográfico da sueca Carolina Setterwall. Cheguei a casa e fui ler mais sobre a autora e não é que, não há muito tempo atrás, tinha lido um artigo que a mesma escreveu no The Guardian com o título The day I found my partner dead. Sempre gostei de biografias, principalmente das cruas, íntimas, privadas e desconfortáveis, porque acho que espelham a humanidade, os lugares comuns, aquilo que se sente, mas que se esconde, aquilo que se pensa e não se diz, mas escreve-se.
No livro, Carolina conta como sobreviveu à morte do companheiro, Aksel, que faleceu inesperadamente cerca de oito meses depois do filho de ambos, Ivan, nascer. Mas há um facto curioso que logo no início desperta a curiosidade do leitor: cinco meses antes de morrer, Aksel, envia um email a Carolina com o assunto ‘se eu morrer’, com instruções precisas de como a companheira deve proceder caso o mesmo “bata a bota”. O companheiro de Carolina, que viria a falecer cinco meses depois, termina o email com a frase “esperemos pelo melhor”. “Esperemos pelo melhor” veio a dar o nome ao livro da autora, em inglês Let’s Hope for the Best, em jeito de homenagem.
E que bela homenagem
De ressalvar nesta book review: a autora escreve em segunda pessoa, dirigindo-se diretamente para o companheiro morto. Uma forma narrativa não tão usual, mas extremamente apropriada para obras autobiográficas, por criar uma proximidade temporal com o leitor. Ao ler este livro tive a constante sensação de estar a ler e a presenciar uma homenagem profunda – da Carolina, autora, ao seu companheiro morto, Aksel:
“Fazes anos amanhã e não queres falar sobre o assunto. Dizes que não ligas aos aniversários e que não te posso comprar um presente. Penso que és estranho, mas não o digo. A maioria das pessoas que conheço são assim. Mas continuam a comemorar os aniversários. E tu conheceste-me agora. Pergunto-me porque não pensas tu nas coisas da mesma maneira”.
O livro começa com uma divisão temporal onde a autora transita entre momentos que se passaram em 2014, data da morte do seu companheiro, e momentos que se passaram em 2009, data na qual os dois se conheceram. A partir daí o livro desenrola-se entre esses dois momentos até se confluírem, mais tarde, num só: o momento presente.
Quando a dor nos torna perturbadoramente objetivos
A autora escreve sobre a morte do companheiro e sobre os momentos que se seguiram de forma extremamente (ou perturbadoramente?) objetiva, prática e realista, sem grande sentimentalismo – quase como se o choque da morte dele ainda pairasse de uma forma tão dolorosa que não permitiu à autora ceder a sentimentalismos.
“Toco-te na bochecha quando estás ali deitado na cama. Não pareces tu. É um corpo, o teu corpo, mas não és tu. O médico parece ter suavizado o teu tom de pele, talvez tenhas uma camada de maquilhagem nas faces. Estás ali deitado, morto, e eu entendo que o objetivo é que a minha última lembrança de ti seja boa, que fique a ideia de que pareces descansar em paz. Também sei que nunca será assim. Agora, és apenas um corpo. Um corpo que o médico compôs para nos dar a oportunidade de nos despedirmos”.
Autobiografia e julgamento
Estamos em 2016. Passou-se um ano e oito meses desde a morte do seu companheiro e a autora dá indícios, tímidos e justificados, de “estar a ficar inquieta” e cansada de se sentir sozinha. Até que se apaixona:
“Estou tão apaixonada que não sei o que fazer comigo, e não tenho ninguém com quem partilhar isto (…) Ainda nem passaram dois anos desde que morreste. Passou um ano e oito meses e não sei durante quanto tempo mais me devo abster (…) Posso seguir em frente? Isso faz de mim uma pessoa fria, quase horrível? O facto de estar apaixonada – sim, apaixonada – tão pouco tempo depois de te ter perdido?”.
Como assim?
Só se passou um ano e oito meses! Incredulidade (e julgamento).
É incrível como os livros autobiográficos nos obrigam a olhar para dentro, a rever os nossos sistemas de crença. Como leitora, não pude de deixar de sentir um desdém pela autora neste momento da história.
No entanto, foi esse preciso momento que me permitiu desconstruir o meu próprio desapreço. Ao observar a minha própria inquietação com o facto da autora se ter apaixonado pouco depois do companheiro morrer, pude desconstruir a minha crença de que, idealmente, se deve fazer um luto prolongado e sofrer todas as dores antes do que quer que seja.
Numa autobiografia é fácil julgar, mas é necessário fazê-lo de forma a desconstruir as nossas firmes convicções. Afinal não sou eu que sinto ou vivo aquela dor na primeira pessoa.
“Existir Depois de Ti” foi considerado um dos melhores livros de 2019 pelo The Guardian e lançado no mercado português em janeiro de 2020.
Curiosidades:
Descobri a identidade da pessoa pela qual a autora se apaixonou. Chama-se Tom Malmquist e é, nem mais nem menos, um escritor sueco viúvo que escreveu o seu primeiro livro sobre a companheira, que morreu depois de ser diagnosticada com leucemia 33 semanas após a gravidez. In Every Moment We Are Still Alive (já está na minha lista) é o nome do livro do autor que foi considerado pelo The New York Times como um dos “100 Livros Notáveis de 2018”.
Confluências:
- Apaixonou-se apenas um ano e oito meses depois da morte do companheiro MAS entregou-se sem medo novamente à paixão
- Mima demasiado o filho e não impõe limite MAS ama e protege o filho como qualquer mãe
- Tem tendência a ser submissa, permissiva e resignada MAS coloca-se no lugar dos outros
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