Daniel Cardoso tem um relacionamento com três mulheres em simultâneo. Todos sabem de todos. Elas partilham uma relação de amizade e todos pertencem à mesma família. Os quatro são poliamorosos e mantêm uma relação afectiva e sexual de cariz não-monogâmico. Fica a saber mais sobre o poliamor nesta entrevista.
Daniel tem 26 anos e é professor assistente e investigador na área do poliamor e nas questões de género. Travou conhecimento sobre relações não-monogâmicas, pela primeira vez com 17 anos, no livro “Um estranho numa terra estranha”. O romance de ficção científica de Robert Heinlein não fala directamente de poliamor mas coloca a possibilidade de uma não-monogamia responsável. “Ao ler o livro, apercebi-me que não tinha argumentos para refutar a ideia de que o livro apresenta como sendo uma outra alternativa de vida. A partir daí decidi adotar a coisa na teoria, sem sequer conhecer a palavra poliamor.” Durante o caminho, conheceu Sofia por quem se apaixonou e com quem iniciou uma relação aberta que “já dura mais que alguns casamentos”, diz o próprio.
Para o activista de questões de género “o poliamor é olhar para a possibilidade de ter várias relações amorosas e/ou sexuais e/ou íntimas como sendo possível, válido e valioso para as pessoas envolvidas dentro de um contexto informado”.
O que é o poliamor?
É a opção ou filosofia que defende a possibilidade de ter várias relações íntimas, sexuais e/ou amorosas com mais do que uma pessoa, de forma sustentável e valiosa, dentro de uma lógica de consentimento informado e responsável de todas as partes envolvidas.
O movimento poliamoroso tem uma componente política e parte das suas raízes surgem nas críticas feministas do século XIX e XX na associação entre a monogamia compulsória, o patriarcado e ocapitalismo.
Existem diversas formas de poliamor e são, fundamentalmente, as pessoas que decidem as regras das suas relações. Isto significa que podemos ter, por exemplo, uma família poliamorosa constituída por três pessoas na qual a relação está fechada a essas pessoas, tanto emocionalmente como sexualmente ou, por exemplo, duas pessoas que têm uma relação íntima, sexual e romântica entre si , mas também têm outras relações que consideram ter menos importância com outras pessoas. Todos os envolvidos constituem aquilo que se considera ser o núcleo familiar.
Depois também existem organizações mais fluídas na qual a ideia do núcleo familiar desvanece. Estas são as constelações poliamorosas na qual uma pessoa está ligada a outra pessoa, que por sua vez, está ligada a outra e assim sucessivamente.
A retórica por detrás do poliamor dá muita ênfase à questão emocional e psicológica. O poliamor está necessariamente relacionado com uma espécie de experiência sentimental e por isso é se sublinha, tantas vezes, a distinção entre poliamor e swing. No swing o sexo é obrigatório e as emoções são interditas. Já no poliamor o sexo é facultativo, mas as emoções têm que estar lá. É claro que na prática existem casais que só tem relações sexuais com um determinado casal durante anos e não o fazem com mais ninguém. Então será que é assim tão fácil distinguir o swing do poliamor? Este é o primeiro problema.
Na minha opinião basta estar presente um dos elementos (sexual, emocional, afetivo), mas dentro de uma dinâmica de consentimento informado e de uma dinâmica de direitos.
Qual é a importância das regras numa relação poliamorosa?
No poliamor as pessoas criam as suas próprias regras e definem aquelas que acham melhor consoante o tipo de relação que têm.
Vamos supor a seguinte situação: uma pessoa, dentro de uma relação poliamorosa, envolve-se com alguém e não avisa os seus companheiros. Por exemplo, eu conheço pessoas que numa situação dessas ficariam muito chateadas porque se violou a regra de informar antes das coisas acontecerem. Por outro lado, conheço outras que não ficariam minimamente incomodadas desde que a pessoa, depois da situação acontecer e quando fosse oportuno, as informasse. Tudo depende das pessoas envolvidas e das regras criadas dentro da relação.
No meu caso, eu convivo com mais duas pessoas e cada um de nós tem o seu quarto. Se eu for para casa com outra pessoa, é óbvio que não vou fazer nada na cama das minhas companheiras. É senso comum. No entanto, quando não é possível existir uma situação assim, onde há 3 pessoas e só existem 2 quartos, é necessário que haja uma negociação. Costuma dizer-se que existe um poliamor por cada pessoa poliamorosa, ou seja, todas as pessoas são diferentes e todas têm as suas regras que, porventura, evoluem com as relações. Isso leva-nos a outra grande questão: a traição.
Nestas relações também há traição, mas a definição é diferente. Em vez de ser fazer sexo com outra pessoa, passa a ser mentir. Se estou a mentir, não estou a ser poliamoroso. O ponto básico de uma ética poliamorosa é a franqueza.
Qual é a diferença entre o poliamor e a poligamia?
A poligamia está associada a uma estrutura hierárquica e a direitos desiguais. Dentro da poligamia existe ainda a poliandria e a poligenia, sendo que a mais comum é a poligenia na qual o homem tem várias mulheres. Nesse sentido há uma desigualdade de direitos porque as mulheres não podem ter outras relações, seja com homens ou com mulheres. Não existe negociação.
Como se combate o ciúme numa relação poliamorosa?
Na prática há muito trabalho de introspecção e muita conversa. Eu costumo dizer que o ciúme, mais do que uma emoção, é um agregado de emoções, de sensações. Se analisarmos todos os elementos do ciúme, como a insegurança, o sentimento de posse e a falta de autoestima torna-se mais fácil ir trabalhando cada um desses elementos.
Acho que tenho de ser eu a trabalhar sobre eles, não são outras pessoas que me vão dar auto-estima e segurança. No entanto, numa situação em que me esteja a sentir mais inseguro, é bom dizermos à outra pessoa o que estamos a sentir e essa pessoa dizer “não te preocupes, está tudo bem…”. Reforçar o nosso apoio e disponibilidade. É um processo em continuidade, não uma terapia que fazemos e que tem um final, é uma aprendizagem e uma negociação contínua.
Como é feita a divisão do tempo com os parceiros?
É complicado e pode ser desgastante. Convém que haja, da parte de toda a gente, uma preocupação com todas as pessoas envolvidas. Quando há uma preocupação em facilitar a vida a toda a gente também se gera uma grande empatia. No meu caso, todos nós temos um calendário partilhado. Quando vejo o meu calendário não estou só a ver o meu, mas o de todos. É importante para distribuir o tempo que estamos a sós, mas também para distribuir o tempo que passamos em família, os três, os quatro…
Na verdade e no dia-a-dia, todos temos de lidar com a divisão do tempo entre amigos, família, faculdade, portanto, na relação poliamorosa, é apenas mais uma coisa.
Quais são os principais desafios que encontras dentro deste tipo de relacionamento?
Uma parte muito importante dos desafios é estarmos constantemente a desconstruir aquilo que nos é ensinado. A linguagem que nos “deram” é uma linguagem extremamente mononormativa. Não existe por exemplo o antónimo de ciúme, neste caso, o antónimo de ciúme é o poliamor, ou seja, sentimento de felicidade.
Muitas vezes explicar o poliamor é complicado porque não temos palavras. O que faz com que o poliamor e todas as outras relações não monogâmicas não sejam aceites, ou seja, são discriminadas. 99% das pessoas não sabem o que quer dizer poliamoroso. Enquanto activista e poliamoroso, tenho de estar sempre a explicar e torna-se cansativo. Já ouvi as coisas mais absurdas… desde que passo doenças, HIV, desde que só quero ter mais sexo etc..
No entanto, sinto que hoje em dia há mais visibilidade, as pessoas são capazes de reclamar por uma identidade, o que antes não acontecia. Estamos a assistir à consolidação de uma série de princípios que estavam mais ou menos difusos e incertos.
O que tens a dizer sobre o termo “Poliparentalidades“?
Esta ideia não está apenas ligada ao poliamor, é um termo que se está a tentar criar a partir de vários fenómenos sociais e tem a ver com todas as situações em que uma criança não tem só duas figuras protectoras. É tao simples quanto uma criança viver na mesma casa com os pais e os avós. Nas relações poliamorosas podemos ter cinco pessoas à volta de uma criança, todos eles pais e mães que partilham responsabilidades. Dentro de uma dinâmica familiar isto e possível, do ponto de vista legal, ainda não é reconhecido.
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