À conversa com R. Saraswathi Jois
Faz da madrugada manhã, da existência devoção e dos lábios um sorriso maduro e augusto. O despertador toca-lhe às três da manhã, todos os dias à exceção de sábado. Sai de casa e é noite cerrada. Aquele que para a maioria das pessoas seria um esforço continuado para uma mulher de 76 anos não passa, para ela, de uma devoção sem tréguas, de uma viagem sem retorno e com apenas uma meta: a da purificação espiritual.
O ar quente e húmido e o som de uma respiração uníssona – que mais se assemelha ao som do oceano – inunda a sala. As pessoas movem-se com compassos únicos e cada movimento entra em sintonia com a respiração.
Imponente e de semblante austero, mas doce para quem lhe vê os olhos, caminha pela sala com uma cadência confiante e guia os alunos pelas posturas que compõem aquela que é a primeira série do Ashtanga Yoga.
Todos os anos, centenas de estudantes de todo o mundo viajam para o Instituto de Ashtanga Yoga em Mysore para praticar consigo. Filha de Sri K. Pattabhi Jois, um dos maiores nomes do yoga contemporâneo, Saraswathi Jois é hoje, não só uma referência do Ashtanga Yoga como também um símbolo da força de uma mulher que, no seio da sociedade indiana da década de 70, teve a coragem de questionar as normas sociais e a genealogia familiar daquela época. Foi a primeira mulher a dar aulas de yoga a homens e a primeira mulher a ser admitida no Colégio de Sânscrito, na cidade de Mysore, Índia.
Não é difícil perceber como é que Saraswathi, de ar doce e afetuoso, se tornou num símbolo do yoga contemporâneo. Tudo nela é autêntico e singular. Era ainda jovem quando questionou a exclusividade do yoga à sociedade masculina e quando, contestando as reticências do seu pai (diz-me sorridente), se perguntou “porque razão é que os homens podiam ensinar as mulheres e as mulheres não podiam ensinar os homens?”.
Encontramo-nos no seu shala, na localidade de Gokulam, em Mysore, onde todos os dias dá aulas. Como é ser uma mulher na Índia, uma mulher que rompe com o esperado e que cria o inesperado? Uma mulher que, magnificamente determinada e ferozmente devota, conserva a linhagem familiar do yoga e os ensinamentos do seu pai? Como são os dias daquela que é hoje um dos maiores ícones femininos na história do yoga? Foi este o ponto de partida da nossa conversa.
Como é viver um dia da sua vida?
O dia é apenas para ensinar yoga. Acordo às três da manhã. Visto-me e vou para o shala. Ensino das 4h30 às 10h00 da manhã, mas quando tenho mais alunos tenho que os dividir em vários grupos, com horários diferentes e fico no shala mais tempo. Depois, quando acabo as aulas, volto para casa e tomo banho. É nessa altura que descanso. Às 13h30 almoço e estou com a minha família e depois às 16h30 dou aulas no shala principal (o “shala principal” a que se refere fica na casa da família Jois e é o shala onde o seu pai dava aulas). Essa é a minha casa. O meu pai deu-ma como presente. Quando o meu pai era vivo vivíamos todos juntos… Toda a nossa família vivia no shala principal. Agora estou lá sozinha. Depois de acabar as aulas da tarde vou comer e às 21h30 vejo televisão. Adoro ver televisão! E depois durmo.
Como foi aprender yoga com o seu pai?
O meu pai era muito rigoroso. Eu comecei com dez anos de idade e pratiquei 23 anos. Tive formação com o meu pai, em casa, mas também tive formação profissional com Krishnamacharya, que foi o guru do meu pai. Comecei por ajudar o meu pai, mas, com o tempo, decidi começar a ensinar. Na altura era muito difícil uma mulher dar aulas aos homens. As pessoas não gostavam e criticavam muito. No início o meu pai também não concordou, mas depois lá acabou por aceitar. Afinal, se os homens podiam ensinar as mulheres porque é que as mulheres não podiam ensinar os homens? Era no que eu estava sempre a pensar! Comecei a ensinar yoga em Lakshapuram quando o meu filho Sharath tinha 4 anos. No início foi muito difícil porque não tinha muitos alunos mas com o tempo os alunos começaram a vir. Eu tive o meu próprio shala (diz, sorridente) e também acompanhei o meu pai durante 14 anos. Quando a minha mãe faleceu eu fiquei com o meu pai, vivemos juntos muitos anos. Tenho muitas saudades dele.
Como é ser uma mulher na Índia?
A Índia é um país mais moderno e as pessoas são mais educadas. Antigamente, quando eu era jovem era difícil as raparigas e os rapazes estarem juntos em situações sociais. A igualdade entre os homens e as mulheres era muito pouca. Hoje em dia as coisas estão melhores, mas mesmo assim, ainda é muito difícil ser mulher na Índia e a situação é muito má!
Neste momento quem passa a tradição do Ashtanga yoga à próxima geração de praticantes é a Saraswathi e o seu filho, Sharath Jois. Quando já não estiver presente, acha que a sua filha, Sharmila Jois, vai seguir os seus passos?
Ela quer fazê-lo. Agora está a ensinar em Bangalore e às vezes vem a Mysore para aprender comigo. Em Bangalore não há muitos estudantes, portanto ela quer vir para ao pé de mim e ganhar aprender mais.
Na hora de se candidatarem ao Instituto, a maioria dos alunos escolhe estudar com o seu filho Sharath, que é considerado o atual guru do Ashtanga yoga. A sua maneira de ensinar é diferente da do seu filho?
Não. A maneira de ensinar é exatamente a mesma. O Sharath não é especial. Ambos tivemos o mesmo guru: Pattabhi Jois, o meu pai. E o meu pai ensinou-nos da mesma maneira.
Ao contrário do seu filho, a Saraswathi nunca deu certificados aos seus alunos (talvez seja essa a razão por que tem menos alunos do que o Sharath). Mas no final de 2016 decidiu começar a certificar os seus estudantes. Porquê esta mudança?
Eu tinha estudantes que estavam comigo há muitos anos, mas depois decidiam que queriam o certificado e iam estudar com o Sharath. Isso não é bom! Se está a estudar comigo não deve mudar. Alguns dos meus alunos mais antigos começaram-me a perguntar pelos certificados e eu decidi começar a dar. Eu quero dar certificados aos alunos mais dedicados e que já estudam comigo há muitos anos. Não quero um estudante que num ano venha estudar comigo e que no ano seguinte mude. É importante para o estudante encontrar o seu guru. Só deve haver um guru porque se o aluno experimentar várias coisas com várias pessoas vai ficar confuso. O aluno deve encontrar o seu guru e ficar com esse guru! É muito importante! A última coisa que o meu pai me disse, antes de falecer, foi “You teach!” (tu, ensina!). Eu só tinha que ensinar. O que está escrito no papel, os certificados, nunca me interessaram.
O que é que significa o yoga para si?
O yoga significa limpeza interna. Limpa a nossa mente. Se praticares de manhã durante o resto do dia vais-te sentir fresca e limpa. E qualquer um pode fazê-lo. As crianças e os idosos. O yoga vai ajudar, mas a pessoa tem que acreditar, acreditar no guru! E para isso o aluno deve estudar com apenas um guru (o seu guru!), para acalmar a mente. O meu pai tinha apenas um guru e o meu único guru sempre foi e é o meu pai.
Depois conta-me sobre as suas viagens pela europa. As que fez e as que vai fazer. Conta-me sobre a cerimónia que vai fazer em honra do seu pai – um homem que está sempre presente em si e nos seus ensinamentos. Agarramos as mãos uma da outra. “Namastê”, digo-lhe, como sinal do meu sentimento e respeito. “Namastê” diz-me com as mãos juntas, com um ar doce e um sorriso desfeito.
Shala do Shri K. Pattabhi Jois Ashtanga Yoga Institute: http://www.kpjayshala.com/
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